Quantcast
Channel: Revista Cult » Andrea Costa Dias
Viewing all articles
Browse latest Browse all 2

O vício e as drogas

$
0
0

Carla Milani Damião

Sociedade Fissurada Para pensar as drogas e a banalidade do mal, livro de Marcia Tiburi e Andréa Costa Dias, tem por mérito combinar reflexão filosófica e psicológica na abordagem dos difíceis temas do vício e das drogas. O livro é dividido em duas partes. A primeira, mais extensa, coube à análise filosófica de Marcia Tiburi; a segunda, de viés sociopolítico e psicológico, à Andréa Costa Dias.

Ambas as autoras submetem o tema à questão moral e política, combinando referências teóricas sempre indicadas. O texto de Andréa Dias se constitui em um aparato teórico crítico associado a uma experiência com o universo das drogas e o espaço que esta ocupa na sociedade. Empiricamente mais distante deste cenário, Tiburi reflete sobre o fundamento deste, ampliando seu sentido de maneira a reconceituar os termos em questão – o vício e a droga – e a relação entre estes, tendo na base da discussão um conceito abrangente de “fissura”. O referencial teórico indicado pelas autoras pode mapear um entendimento prévio se o leitor for familiarizado com as teorias de Foucault, Agamben, Adorno, Arendt, Deleuze, Türcke, para falar dos autores reunidos em torno da discussão atual sobre biopolítica. Generosas, as autoras incorporam outros autores de diferentes áreas, no diálogo que é travado separadamente na escrita.

Na primeira parte do livro, Tiburi constrói, em diferentes seções, uma argumentação clara e consistente em torno do tema – diretamente relacionado ao cotidiano das pessoas, às esferas da moralidade e da violência. Parte de uma certeza: para conhecer o registro ambíguo da dor e do prazer, fomentado pelas drogas, é preciso vencer o moralismo. E, para tanto, faz-se premente uma distinção entre ética e moral, entendendo por moral a parte irrefletida da ética e por ética o resultado do pensamento reflexivo. A eleição de uma perspectiva ética pela autora elimina prontamente a associação entre vício e droga como termos comumente enredados num círculo vicioso, que determina a condenação moral do viciado ou drogado, tratando-os por associação. Verificar, em primeiro lugar, o antigo par de opostos da cultura – virtude e vício –, ao refletir sobre o que se institui como virtude moral em nossos dias, é o primeiro passo dado para desfazer a oposição entre virtude e vício. Pois que, por virtude, entendemos valores que se encontram permeados pelo universo do trabalho no sistema capitalista, seu comprometimento ideológico, refletido não apenas na forma do discurso em esfera pública, mas como conjunto de valores incrustados em hábitos na camada mais fina e superficial da sociedade. Essa prospecção crítica é o cuidado que permeia a exposição de Tiburi que, capítulo a capítulo, adensa-a em camadas. O ponto de vista ético da autora é claro: “Pensar eticamente a questão das drogas é a tarefa urgente no contexto do moralismo ditatorial, que tem validade como falsa consciência, a ideia de uma verdade aceita por todos e que vige apenas porque repetida, sustentando as coisas como elas são”.

A sinceridade de Marcia Tiburi se apresenta no trabalho do conceito certa de que há “uma história subterrânea a ser avaliada”. O conceito base para o entendimento da droga é o vício; em sua base, encontramos, portanto, a moralidade e a alienação do indivíduo na sociedade fissurada. Fissura em duplo sentido: como ruptura e como anseio, ânsia de recobrir o que foi rompido. Desta camada mais profunda – que supõe não somente a fissura-cisão entre indivíduo e sociedade, mas a cisão da subjetividade na configuração de um sujeito que não é mais íntegro, que perdeu algo, mas não o sabe perdido, e que se lança na procura fissurada por aquilo que não conhece ou reconhece mais –, chegamos com Tiburi da camada mais profunda à superfície: à esteticomania e à uma ontologia do corpo fissurado. É preciso acompanhar esse movimento de pensamento ao longo dos capítulos fartos em reflexões instigantes com outros filósofos. Dizer que Tiburi coloca o dedo na ferida seria repeti-la. Sua crítica é o movimento oposto ao da superfície, esta que se torna, contudo, a instância daquilo que pode ser comunicado sobre o incomunicável, o dizer do que não é dito.

Na segunda parte do livro, voltamos à questão inicial, que poderia ser a do leitor desde o início: Por que ainda falar sobre as drogas? As razões desenvolvidas por Andréa Dias nos capítulos subsequentes demonstram a necessidade desta fala, com base na reflexão e no conhecimento não só de processos psicológicos internos, como de aspectos que determinam os espaços políticos nos quais estes se desenvolvem. É neste sentido que a autora lança a seguinte questão: “Como falar de crack sem mencionar a cracolândia paulistana? (…) E como compreender reflexivamente o espaço da cracolândia?”. A denominação de “subgente” em oposição ao que é ser “gente” qualifica a fissura social e política que aprofunda a distinção num plano que reúne, necessariamente, o psicológico ao social e ao político.

A leitura desta obra, portanto, parece ser de grande elucidação do tema tratado, ao percorrer um trabalho teórico composto e motivador para a autorreflexão do leitor. A fundamentação filosófica de Tiburi é aprimorada, pertinente, fortemente autoral e, ao mesmo tempo, humilde na disposição de debater com autores consagrados, autores reconhecidos ou não. Negativamente criticável é um pequeno pudor renitente quando a autora utiliza os filmes em seus comentários. Associar o filme à televisão é possível, mas não em sua natureza. Um pudor certamente provindo da formação adorniana, mas que foi definitivamente salvo por Fassbinder, e o filme muito bem escolhido e analisado: Die Sehnsucht der Veronika Voss. Sehnsucht, traduzido no título em português por “desespero”, perdeu não só a riqueza da palavra, mas um jogo de significados que serviria de grande enlace ao tema. Sehnsucht é também die Sucht zu sehnen (a dependência pelo ansear), um doloroso desejo de autoalimentação que não encontra a paz, não porque ele não pode atingir o objeto desejado, não porque o objeto permanece escondido, mas simplesmente porque não pode ser objetivado”. Veronika Voss, de Fassbinder, é um desses poucos filmes que mostram que o longa já há algum tempo foi aceito não só como objeto de reflexão filosófica, mas como meio de reflexão filosófica, como o foi a literatura do século 19 para a filosofia do século 20. À parte o conceito de indústria cultural adorniano cujo teor crítico devemos certamente compartilhar, mas não adotar como preconceito, é preciso considerar também que filmes mantêm uma abertura à recepção subjetiva e que sua estrutura se mantém naquele fio da navalha, podendo ser tanto meio de reflexão quanto objeto de mera distração. Acredito que o livro teria tido uma coesão maior se tivesse tomado menos esse rumo e mantido mais o perfil analítico-crítico, com a forte ênfase na reflexão ético e estética de Marcia Tiburi, reunido às reflexões e experiência de Andréa Dias.

Carla Milani Damião é professora de Estética na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás

Sociedade Fissurada – Para pensar as drogas e a banalidade do mal
Andréa Costa Dias e Marcia Tiburi
Civilização Brasileira
304 págs. – R$ 30


Viewing all articles
Browse latest Browse all 2

Latest Images

Trending Articles





Latest Images